maio 01, 2011

SINHÁ ANINHA (SEGUNDO ATO)

SINHÁ ANINHA

De: Marcondys França

PERSONAGENS:

ANINHA
CEL SALES (Pai de Aninha)
ALVA (Mãe de Aninha)
BINÁ (Ama de Leite)
SEVERINA (Escrava Invejosa)
BERNADETE (Dama de Companhia)
QUILÊ (Escravo Apaixonado Por Aninha)
DR. RAMOS (Pretendente de Aninha)
CLOVIS (Pai de Ramos)
ALBERTINA (Mãe de Ramos)
ZULÚ (Escravo de Ramos)
PADRE SOARES
COISA RUIM (Capitão do Mato)
PAI VELHO
ESCRAVOS


SEGUNDO ATO
(Escravos passam pela cena reproduzindo trabalho do dia a dia. Três escravas vão a ponta do palco, reproduzem lavagem de roupa na beira do rio)


CENA I
CLÓVIS: - Não achas entranho a falta de entusiasmo da noiva?
ALBERTINA: - Timidez! É comum em jovens noivas...
CLÓVIS: - Sei não... Algo me diz que alguma coisa está errada nessa história.
ALBERTINA: - Meu querido. Aninha é uma moça ajuizada... Ramos é um felizardo em encontra uma moça tão bem afeiçoada.
CLÓVIS: - Acho conveniente que Ramos vá vê-la mais vezes.
ALBERTINA: - É... Tens razão meu querido. Aninha e Ramos se conhecem tão pouco. Uma aproximação poderá criar um vinculo maior entre os noivos.
ZULÚ: - Sinhô...
CLÓVIS: - Diga Zulú.
ZULÚ capitão do mato deseja falá com sinhô.
CLÓVIS: - Peça que entre.
COISA RUIM: - Bons dias sinhô Clóvis. Posso ter um particular...
CLÓVIS: - Claro. Albertina, deixe-nos sós.
ALBERTINA: - Com licença. (Sai)
CLÓVIS: - O que o traz aqui capitão?
COISA RUIM: - Gostaria de vim até sua fazenda pra trazer boas novas... Mas num é bem isso que trouxe inté aqui.
CLÓVIS: - Do que está falando homem?
COISA RUIM: - Acho que preciso de uma cachacinha daquelas.
CLÓVIS: - (Serve-o) Tome.
COISA RUIM: - Diacho! Essa é das boas!
CLÓVIS: - Agora diga.
COISA RUIM: - Creio que o sinhô num sabe. Mas a casa de coroné Sales tá uma tremenda confusão. E é mode o casamento
CLÓVIS: - O que se sucede?
COISA RUIM: - Tudo indica que vosso filho tá sendo enganado por Sinhaninha.
CLÓVIS: - Como é que é? Mais que diabo está dizendo homem?
COISA RUIM: - Posso? (Serve-se) É que Sinhaninha anda de mancebo com um cabra safado.
CLÓVIS: - Não pode ser.
COISA RUIM: - E o pió ainda num disse...
CLÓVIS: - Ainda tem mais?
COISA RUIM: - O cabra safado é um nego... Um preto atrevido lá da fazendo do coroné.
CLÓVIS: - Que infâmia! Se essa história se confirmar será um escândalo. E a reputação do meu filho? Ramos, difamado perante toda província. Isso não ficará assim.
COISA RUIM: - E que o sinhô vai fazê?
CLÓVIS: - Quem viver verá!
COISA RUIM: - Só peço que não diga que foi eu que contei.
CLÓVIS: - Quanto a isso não se preocupe. (Pega dinheiro) Tome aqui. Por sua lealdade.
COISA RUIM: - Obrigado! Com licença. (Sai)
CLÓVIS: - Enrabichada!
ALBERTINA: - Do que falas?
CLÓVIS: - Sinhaninha. Comenta-se em surdina que está enrabichada por um negro escravo de seu pai.
ALBERTINA: - Não pode ser! Vai vê que pelo fato de sair na companhia de um negro, por segurança, as pessoas vejam maldades.
CLÓVIS: - Não é o que comentam.
ALBERTINA: - Que comentam?
CLÓVIS: - Que a noiva de nosso filho está se amasiando com um escravo.
ALBERTINA: - Vala-me Deus! Mas acho que isso não passe de um grande mal entendido.
CLÓVIS: - Onde há fumaça há fogo! Ninguém se atreveria a manchar a honra de uma moça sem nenhum motivo. (Pega o chapéu)
ALBERTINA: - E o que vai fazer?
CLÓVIS: - Ficar aqui parado é que não vou. Irei passar essa história a limpo.
ALBERTINA: - Clovis!
CLÓVIS: - Vou até a fazenda do Coronel Sales. É a honra do meu filho que está em jogo. (Sai)
ALBERTINA: - Tenha calma Não vá se precipitar!
CENA II
SEVERINA: - Anda animada a casa grande...
BINÁ: - Por sua felicidade arguma aprontô.
SEVERINA: - Eu?
BINÁ: - Quem não te conhece que te compre. Vossuncê é a discórdia em pessoa.
SEVERINA: - Os outro apronta e eu que sou errada? Agora vá!
BINÁ: - Escuta aqui sinhá moleca, se aprontá uma das suas, quebro seus dentes.
SEVERINA: - Me sorta! Tá me machucano.
BINÁ: - É pra machucá mermo.
SEVERINA: - Só quero vê o que o coroné vai achá quando me vê sem os dentes. Ainda mais agora...
BINÁ: - Agora o que?
SEVERINA: - Que abriu os oios pra pouca vergonha que tá aconteceno aqui mermo debaixo do teto dele. E vossuncê sabe de tudo e nunca disse nada ao coroné. Isso num vai terminá bem. Quando meu sinhô sobé que vossuncê é uma veia acoviteira... Ai vamo vê quem vai perdê os dentes.
BINÁ: - Num tô acreditano que vossuncê teve a coragem...
SEVERINA: - Coragem? Não... Decência! E o coroné vai sabê me recompensá.
BINÁ: - Vossuncê ainda vai pagá muito caro por isso.
SEVERINA: - Engana-se! Logo terei em minhas mãos minha carta de alforria.
BINÁ: - Sua criaola atrevida! (Bofetada)
SEVERINA: - Cuidado mãe Biná... Vou transformá sua vida num inferno! Sua velha estúpida. Vou convencê o coroné a te mandá pro tronco que é seu lugá. (Sai)
CLÓVIS: - Seu senhor está?
BINÁ: - Ta sim sinhô.
CLÓVIS: - Vá chamá-lo.
BINÁ: - Sim sinhô. Fique a vontade. (Sai)
SALES: - Meu caro Clóvis! Que bons ventos os trazem.
CLÓVIS: - Não sei se são bons ventos.
SALES: - Hora compadre... Aconteceu alguma coisa?
CLÓVIS: - É o compadre que me dirá.
SALES: - Confesso que não estou compreendendo.
CLÓVIS: - Com todo respeito coronel Sales... Vou direto ao assunto que trás aqui.
SALES: - Fique á vontade. Por favor, sente-se.
CLÓVIS: - A honra do meu filho está em jogo.
SALES: - A honra do doutor Ramos?
CLÓVIS: - Pois é compadre... Corro a miúdos que vossa filha, Sinhaninha, está se envolvendo com um negro, escravo, aqui da fazenda.
SALES: - Isso é uma infâmia! Jamais minha filha cometeria tamanho desatino. Mato quem espalha este falso ao testemunho, manchando a honra e a dignidade desta família.
CLÓVIS: - Então derramarás muito sangue. Não se fala em outra coisa por toda província.
SALES: - Coronel Clovis, não dê ouvido a essa gentinha que não tem o que fazer e fica inventando histórias com o nome alheio. Minha filha é uma moça honesta, pura, digna de total confiança. Ofende-me o senhor levantar tal suspeita, fundamentada em conversas desses desocupados.
CLÓVIS: - Não sou eu que estou dizendo e sim o povo. E quanto ao meu filho? Está servindo de chacota nas rodas de conversas.
SALES: - O autor de tamanha intriga pagará por todo sofrimento causado a nossas famílias. Posso assegura-lhe que tudo isso não passa de um mal entendido.
CLÓVIS: - Assim espero. Aninha com um negro... Seria uma desonra. Um escândalo incalculável!
SALES: - Asseguro-lhe que minha filha foi criada com todo rigor. Jamais iria contra os bons costumes.
CLÓVIS: - Torço sinceramente que esteja certo.
SALES: - Conheço minha filha. E dou-lhe a minha palavra. Isso não passa de um grande mau entendido. Logo será esclarecido.
CLÓVIS: - Fico mais tranquilo.
SALES: - Verá que tenho razão. O mal de Aninha é andar sempre em companhia de escravos.
CLÓVIS: - Pode ser...
SALES: - O compadre aceita uma bebida?
CLÓVIS: - Não, obrigado. Tenho que ir. A muito que fazer na fazenda.
SALES: - Creio que sim.
CLÓVIS: - O compadre me dá honra de recepcioná-los em minha casa está noite?
SALES: - Será uma imensa satisfação.
CLÓVIS: - Então até mais vê.
SALES: - Até. (Sai)
CLÓVIS: - Coisa Ruim!
COISA RUIM: - Sim sinhô!?
CLÓVIS: - Leve o negro Quilê ao tronco.
COISA RUIM: - Agora?
CLÓVIS: - Já. Que está esperando?
COISA RUIM: - Tô indo sinhô. (Sai)
CLÓVIS: - Me paga negro! (Sai)
CENA III
BERNADETE: - Quilê...
QUILÊ: - Bernadete?
BERNADETE: - Quilê...
QUILÊ: - Que faz aqui?
BERNADETE: - Fuja...
QUILÊ: - Que maluquice é essa?
BERNADETE: - Vá enquanto ainda há tempo.
QUILÊ: - Num tô entendendo nada.
BERNADETE: - O coroné já sabe de tudo.
QUILÊ: - Mai como?
BERNADETE: - A cobra da Severina. Aquela serpente! Descobriu e correu pra contá pro coroné.
QUILÊ: - E Aninha?
BERNADETE: - Pensei que estava aqui.
QUILÊ: - Vortô pra casa grande.
BERNADETE: - Denou-se! Coisa Ruim ta vindo pra cá.
QUILÊ: - O capitão do mato!
BERNADETE: - O coroné ordenou ele a te levá pro tronco. Fuja em quanto há tempo Quilê. Tenho mal pressentimento.
ANINHA: - Quilê.
QUILÊ: - Aninha.
BERNADETE: - Que faz aqui? Ficou maluca?
ANINHA: - Não há tempo para explicação. Venha comigo.
BERNADETE: - Que isso? Que antecipá  a morte dele?
ANINHA: - Se não vier comigo... Será um homem morto.
QUILÊ: - Pra onde?
ANINHA: - Vou prepara sua fuga pro Quilombo.
BERNADETE: - E como Sinhaninha fará isso?
ANINHA: - Conheço alguns abolicionistas que nos ajudarão.
BERNADETE: - E quanto a eu?
ANINHA: - Você não está em perigo. O alvo é Quilê.
BERNADETE: - Então vão...
ANINHA: - Obrigada minha amiga.
BERNADETE: - Você é louca Sinhaninha.
ANINHA: - Não... Não me perdoarei se algo acontecer a Quilê.
BERNADETE: - Boa sorte Quilê.
QUILÊ: - Inté breve!
BERNADETE: - Inté. (Saem)
CENA IV
ALVA: - Sales... Aninha, não consigo encontrá-la.
SALES: - Quem abriu o quarto?
ALVA: - Não sei...
SALES: - Irresponsável! Não serve nem pra vigiar a própria filha.
ALVA: - Por que me acusas?
SALES: - Sempre soube que acabaria mal. (Severina houve a conversa) Nunca que daria certo, pegar a filha de uma negra, com sangre negro, pra criar...
ALVA: - Chega! Pare com isso... Alguém pode ouvir.
SALES: - Aninha não nega sua raça. Olha o desgosto que nos dá. Sempre teve um pé enfiado na senzala.
ALVA: - É minha filha.
SALES: - Mas não a respeita como mãe. A vontade que tenho é de ordenar que prenda no troco e a castigue-a como merece.
ALVA: - Não serias capaz.
SALES: - Não duvide disso! Biná... (Grita)
BINÁ: - Nhinhô?!
SALES: - Onde está aninha?
BINÁ: - Sei não sinhô.
SALES: - Não é possível que Aninha tenha saído e ninguém a tenha visto.
ALVA: - E Bernadete Bina?
BINÁ: - Está na cozinha.
SALES: - Vá chamá-la. (Bina sai) Negra velha imprestável!
ALVA: - Calma homem.
SALES: - Calma!
BERNADETE: -Sinhô...
SALES: - Onde está Aninha?
BERNADETE: - Seio não sinhô.
SALES: - Não minta criola.
BERNADETE: - Juro que num seio.
SALES: - Não sabe?
ALVA: - Calma Sales.
BERNADETE: - Não. Pensei que estivesse trancafiada em seu quarto.
SALES: - Se estiver mentindo...
COISA RUIM: - Coroné...
SALES: - Que foi?
COISA RUIM: - O nego Quilê... Fugiu.
SALES: - Que está esperando? Junte alguns homens e vá a seu encalço.
COISA RUIM: - Com licença. (Sai)
SALES: - Sai... (Grita. Bernadete sai) Que desonra! Só falta Aninha ter fugido com esse negro safado.
ALVA: - Aninha não seria capaz.
SALES: - Não duvido nada. E agora que direi a família de Ramos?
ALVA: - Vamos mandar um mensageiro... Dizer que Aninha está doente...
SALES: - Não. Seria óbvio demais. Diremos que você está constipada. (Saem)
CENA V
BERNADETE: - Que loucura!
BINÁ: - Que essa menina tá fazeno?
BERNADETE: - Isso vai acabe mal.
BINÁ: - Que tá sabeno menina?
BERNADETE: - Num quero nem pensá...
BINÁ: - Quilê?
BERNADETE: - Mãe Biná, a última vez que viu Aninha, ela tava com Quilê.
BINÁ: - Meu Deus! Então a coisa tomou um rumo pió que eu imaginava.
BERNADETE: - E vai sobrar para todo mundo. Vamo acabá num tronco.
SEVERINA: - Não quero tá na pele de vossuncês.
BERNADETE: - Vai pro inferno sua cobra!
SEVERINA: - Inferno? É o que tua vidinha tão insignificante vai se torná.
BERNADETE: - Eu vou te mostrá... (Parte para agressão)
BINÁ: - Parem já com isso. Num quero confusão na minha cozinha.
BERNADETE: - Só num vou infincá minha unha nessa tua cara cínica em respeito a mãe Biná. (Sai)
SEVERINA: - Tô moreno de medo!
BINÁ: - Chega!
SEVERINA: - Mãe Biná teve uma fia, num teve?
BINÁ: - Num é de tua contá.
SEVERINA: - Mode que ficou tão nelvosa?
BINÁ: - Sai daqui antes que eu perda a paciência.
SEVERINA: - E o que a nega veia vai fazê?
BINÁ: - Num me provoque menina!
SEVERINA: - Será Sinhaninha tua fia?
BINÁ: - Que conversa é essa?
SEVERINA: - Ouvi coisas! Aliás, atualmente ouço coisas demais.
BINÁ: - Sim tive uma fia. Mas morreu.
SEVERINA: - Vossuncê mente tão mal. Mãe Biná, já pensou se o sinhô Ramos discobre que sua noivinha tem sangue negro?
BINÁ: - Sinhaninha é fia da sinhá Alva.
SEVERINA: - E eu... Sou uma baronesa. (Sai)
BINÁ: - Nega disgraçada!. (Sai)
CENA VI
PADRE SOARES: - Já vai... Espere... Só um momento! Senhor! Quem será a esta hora?
ANINHA: - Padre...
PADRE SOARES: - Aninha? Que faz aqui a esta hora? Aconteceu alguma coisa com...
ANINHA: - Preciso de sua ajuda padre.
PADRE SOARES: - Seus pais sabem que estás aqui?
ANINHA: - Não.
PADRE SOARES: - Senhor! O que estás a me dizer menina?! Isso é lá hora de uma moça andar sozinha por essas bandas?! Não sabes que é perigoso e imprudente?
ANINHA: - Que me trás aqui é caso de vida ou morte.
PADRE SOARES: - Por Deus! Então diga.
ANINHA: - Só o senhor poderá nos ajudar...
PADRE SOARES: - Estou confuso. Não estou entendendo mais nada.
ANINHA: - Explicarei.
PADRE SOARES: - Pela o avançar das horas... Só deve ser mesmo grave.
ANINHA: - E, é. De sua ajuda depende a vida de um homem.
PADRE SOARES: - Então isto é mais grave que pensei. Conte-me.
ANINHA: - Peço-lhe encarecidamente que nos ajude.
PADRE SOARES: - Nos ajude?
ANINHA: - Quilê? (Entra)
PADRE SOARES: - Um escravo.
ANINHA: - Um homem que está com a sua vida em risco. Se o capitão do mato põe suas mãos neste homem estará morto.
PADRE SOARES: - Que fez este pobre infeliz?
ANINHA: - Esta sendo condenado por amar...
PADRE SOARES: - Que estás a me dizer menina?
ANINHA: - O amor custará a vida desse pobre homem.
PADRE SOARES: - E o que deseja de mim?
ANINHA: - Que acolha Quilê aqui e o esconda até que eu chegue com a ajuda para tirá-lo da província.
PADRE SOARES: - Como vai fazer isso?
ANINHA: - Os abolicionistas. Eles me ajudarão a levar Quilê para o quilombo.
PADRE SOARES: - Isto é ilegal. Bem sabes disso... Se eu os ajudar, terei o Coronel como inimigo. Estarei cometendo um crime aos olhos da lei.
ANINHA: - Preferes a amizade do meu pai a vida deste homem? Não compreendes a gravidade da situação?
PADRE SOARES: - Este escravo é propriedade de seu pai...
ANINHA: - Propriedade? Então todo aquele sermão onde o senhor declara que todos somos criaturas feitas imagem e semelhança de Deus... E quanto o amor ao próximo? Não diz a bíblia que devemos amar uns aos outros como a si mesmo?
PADRE SOARES: - Não confunda as coisas...
ANINHA: - E este homem não  é como os outros? Não chora ou sorrir como os outros, não sente dor ou frio como os outros... Não se fere e sangra como os outros... não nasceu, vive, sonha, sofre como os outros? Apesar da diferença da cor da sua pele, é um ser humano, assim como o branco.
PADRE SOARES: - Eu quero ajudar... Mas entenda...
ANINHA: - Estou desapontada... De que vale a fé sem as obras. O senhor vai mesmo entregar este homem a própria sorte quando na verdade poderia evitar?! Ficarás tranqüilo com sua consciência padre? Será que não é hora de cumprir com sua verdadeira missão? É hora desta igreja tirar esta venda dos olhos e enxergar além de seus próprios interesses. Reparar todos estes séculos de injustiças.
PADRE SOARES: - Se descobrem que guardo um negro fujão aqui em minha paróquia poderei até ser condenado.
ANINHA: - É uma possibilidade. Mas deste julgamento poderá se safar, já do divino não. E no mais padre, Deus esta conosco.
PADRE SOARES: - Tem razão.
ANINHA: - Que dizer...
PADRE SOARES: - Vou ajudá-los.
ANINHA: - Ah, padre!
PADRE SOARES: - Só que tem apenas uma semana.
ANINHA: - Claro! Obrigada padre. Deus o abençoe.
PADRE SOARES: - E nos proteja.
ANINHA: - Quilê, já sabe... Seja discreto. Ninguém poderá vê-lo, ou tudo estará perdido.
PADRE SOARES: - Agora vá filha.
ANINHA: - Estás em boas mãos. Sua benção padre. (Sai)
PADRE SOARES: - Venha Quilê. (Saem)
CENA VI
ZULU: - Pai Veio... Sua bença.
PAI VELHO: - Que Deus te bençoe fio.
ZULU: - Vim trazê umas coisinhas pra vossuncê.
PAI VELHO: - Sempre precupado com esse preto veo.
ZULU: - Sabe que quero muito bem a vossuncê veio.
PAI VELHO: - E num seio? Vossuncê é o único que se alembra desse traste veio.
ZULU: - Que traste que nada! Num fale assim, pai veio. Vossuncê é livre.
PAI VELHO: - Livre! Pra que? Que adianta essa mardita liberdade?
ZULU: - Pai veio foi beneficiado pela lei.
PAI VELHO: - Porqueira de lei.
ZULU: - Mai graça a essa lei pai veio e outros negros escravos tão livre.
PAI VELHO: - Que liberdade é essa meu fio? Essa lei do sexagenário é só ilusão.
ZULU: - Por que pai veio diz isso?
PAI VELHO: - Ouça aqui fio... Um homi preto, castigado por essa vida de escavidão, veio e doente serve pra que?
ZULU: - Ao meno pai veio pode descansá...
PAI VELHO: - Descansá... Um nego veio, inválido... Só discansa dispois de morto.
ZULU: - Credo! Num diga um disconjuro desse... Pai veio num vai morrer tão cedo. Pai veio há de viver por muito tempo ainda.
PAI VELHO: - Morrer pra eu seria a mió coisa que Deus poderia me dá nessa vida. Tudo que eu tinha me foi tirado...
ZULU: - Ouvi falá que pai veio era rei na sua terra...
PAI VELHO: - Foi trazido pra cá, que nem animá, dentro daquele navio negreiro. Ah, meu fio... Vi muita gente minha morrer a mingua... Quando num era da peste, morria de fome.
ZULU: - Mas pai sobreviveu. E tá aqui.
PAI VELHO: - Antes tivesse morrido. Aqui fui separado do meu grande amô.
ZULU: - Nunca mai soube dela?
PAI VELHO: - Tá mai perto que imagina. E minha fia tamém.
ZULU: - Deve ser difici, né pai?
PAI VELHO: - Minha fia é a criatura mai angelical que existe.
ZULU: - É pai. Tem um coração de ouro.
PAI VELHO: - A única coisa que me consola. É sabê que minha fia num teve o mermo distino deu e de sua mãe. Num veve escrava.
ZULU: - A escravidão tá próximo do fim. Já vi falano muita coisa lá na fazenda. Há um grupo de homis que lutam pela o fim da escravidão e em favô da abolição.
PAI VELHO: - Só espero num morrê antes... Sabe Zulu. Quero vê vossuncê livre.
ZULU: - Mas enquanto isso preciso vortá pra fazenda antes que dê por minha farta.
PAI VELHO: - Vá sim fio. Num quero que tenha probrema mode eu.
ZULU: - Sua bença pai.
PAI VELHO: - Que Deus o abençoe fio. (Saem)
SEVERINA: - Então é isso?! O preto veio tá vivo. Vivinho da silva! Se o nego veio tá vivo, por que é que veia Biná diz que ta morto? He, he, he... Aí tem coisa! Nesse angu tem caroço... E eu vou descobrir! É claro. Sinhaninha é fia desse veio. Agora sim. Tô entendendo tudo. (Sai)
CENA VIII
ALBERTINA: - Sinhaninha?
ANINHA: - Boas noites!
ALBERTINA: - Boas...
CLOVIS: - Sinhaninha?! Que faz aqui? Estás sozinha?
ALBERTINA: - Vossa mãe sabe que estás aqui?
ANINHA: - Falar com Ramos.
CLOVIS: - Falar com Ramos?
ANINHA: - Sim senhor. Por favor...
CLOVIS: - Estás nervosa.
ALBERTINA: - Sente-se. Aceita uma água.
ANINHA: - Apenas desejo falar com Ramos.
CLOVIS: - Albertina faça companhia a senhorita Aninha. Vou chamar Ramos...
ALBERTINA: - Claro.
ANINHA: - Obrigada.
ALBERTINA: - O que há minha filha? Que está acontecendo?
ANINHA: - Nada senhora.
ALBERTINA: - Como nada! Vosmicê aparece assim, de repente...
ANINHA: - Preciso falar com Ramos.
ALBERTINA: - Vou mandar avisar a seus pais que estás aqui.
ANINHA: - Não. Por favor... Eles não podem saber que estou aqui.
ALBERTINA: - Mais por que?
ANINHA: - A vida de um homem está em jogo.
RAMOS: - Aninha?
ALBERTINA: - Vou deixá-los a sós. (Sai)
ANINHA: - Ramos... Preciso de sua ajuda.
RAMOS: - E em que posso ajudá-la.
ANINHA: - Sei que és abolicionista.
RAMOS: - Quem lhe disse isso?
ANINHA: - Também sou simpatizante do movimento.
RAMOS: - Como posso ajudá-la?
ANINHA: - Tenho um amigo, um escravo. Precisa de fuga.
RAMOS: - O que lhe faz pensar que posso ajudá-lo?
ANINHA: - Sei que tens um bom coração. Quilê corre risco de morte.
RAMOS: - Quilê. (Breve silêncio) Acha mesmo que ajudaria a um homem que tem sido o motivo da minha desonra?
ANINHA: - Nunca fiz nenhum acordo com o senhor. Por tanto nunca o desonrei.
RAMOS: - Seria capaz de qual quer coisa para salvar a vida desse desgraçado?
ANINHA: - Qual quer coisa!
RAMOS: - Qual quer coisa?
ANINHA: - Sim.
RAMOS: - Até se casar comigo para salvar a vida dele?
ANINHA: - Sim.
RAMOS: - Se sacrificaria a tanto?
ANINHA: - Não seria nenhum sacrifício. Quem ama é capaz de libertar. Agora caí em sã consciência. Nossa sociedade jamais aceitará que uma moça branca se case com um homem negro, escravo.
RAMOS: - Admiro sua coragem. Sua sinceridade me comove.
ANINHA: - Sei que és um bom homem. E que assim como eu, não se sente confortável ao vê o sofrimento destes pobres infelizes.
RAMOS: - Eu o ajudarei.
ANINHA: - Meu Deus! Nem sei como agradecê-lo.
RAMOS: - Se um dia poder me amar com tanta lealdade...
ANINHA: - Temos que ir. Não temos muito tempo.
RAMOS: - Vamos...
CLÓVIS: - Onde vão?
ALBERTINA: - Não podem sair assim...
RAMOS: - Não há com que se preocupar. Logo estaremos de volta. (Saem)
CLÓVIS: - Que loucura é essa?
ALBERTINA: - Não faço idéia. Mas boa coisa não é.
CLÓVIS: - Meu chapéu?
ALBERTINA: - Onde vais?
CLÓVIS: - Saber o que está acontecendo. (Sai)

CENA IX
SALES: - Coisa Ruim...
ALVA: - Que queres com o capitão do mato?
SALES: - Não te metas...
COISA RUIM: - Sim senhô?
SALES: - Aninha?
COISA RUIM: - Nem siná da moça.
SALES: - Vamos vê se não aparece...
ALVA: - Que vais fazer?
SALES: - Coisa Ruim... Pegue Bernadete e a velha Biná...
ALVA: - Não Sales...
SALES: - Leve-as para o tronco.
COISA RUIM: - Sim sinhô. (Sai)
SALES: - Cansei de ser benevolente. Vamos vê se agora não falam o que sabem.
ALVA: - Isso é loucura homem.
SALES: - Loucura é ter deixado sua filha chegar ao ponto no qual chegou.
ALVA: - Preferia morrer ao presenciar tudo isso.
SALE S: - Nunca devíamos ter pego aquela menina pra criar. Corre em sua veias sangue ruim, sangue de negro.
ALVA: - Não castigue a negra Biná... Tem piedade Sales... Já tem idade avançada. Não irá suportar o castigo.
SALES: - Se isso for verdade... Então dirá logo onde está Aninha.
COISA RUIM: - Sinhô... Já estão no tronco.
SALES: - Vamos ver se não falam. (Sai)
CENA X
SOARES: - Já vai... Jesus, Maria, José... Não precisa derrubar a porta!
SEVERINA: - Padre.
SOARES: - Você...
SEVERINA: - É. Sou uma escrava da fazenda do Coroné Sales.
SOARES: - Que faz aqui?
SEVERINA: - Como o vossuncê num soubesse.
SOARES: - Que estás dizendo sua negrinha atrevida?
SEVERINA: - Sei que Sinhaninha tá aqui.
SOARES: - Tá variando?
SEVERINA: - Tem um recado importante pra ela.
SOARES: - Perdeu a viagem.
SEVERINA: - É uma pena. (Fala alto) Poi ela gostaria de sabê que a velha Biná tá no tronco junco com a sonsa da Bernadete. E num vai aguentá muito tempo.
ANINHA: - Que estás dizendo?
SEVERINA: - Isso mermo que vossuncê ouviu. Se a veia Biná e a outra acovetera tua num dissé onde vossuncê tá, vão apanhá inté morrê. E sabe que eu to inté com peninha delas.
ANINHA: - Nega atrevida! (Bofetada)
SEVERINA: - Essa é a última vez que vossuncê me toca. Mode que vossuncê num é mio que eu.
SOARES: - Veja com fala com sua senhora.
SEVERINA: - Fala sério! Ela é tão escrava quanto eu.
ANINHA: - Que loucura é essa?
SOARES: - Cala-te!
ANINHA: - Padre? O senhor... Sabe de alguma coisa?
SOARES: - Não dê ouvido a essa negra atrevida!
SEVERINA: - Vossuncê num é fia do coroné com Sinhá Alva. Sua mãe é a nega Biná.
ANINHA: - Não pode ser...
SOARES: - Saia daqui sua nega.
SEVERINA: - E teu pai tá vivo. É um veio nego alforriado.
ANINHA: - Padre... Isso é verdade?
SOARES: - Não dê ouvidos a está negra...
SEVERINA: - Vai deixá tua mãe morrer no tronco?
ANINHA: - Biná! Minha mãe.
SEVERINA: - Se demorá muito... Sei não. A veia num vai aguentar.
ANINHA: - Padre... Tenho sangre negro?
SOARES: - Filha...
ANINHA: - Não minta pra mim!
SOARES: - Vá salvar tua mãe. (Aninha sai correndo)
SEVERINA: - Pela primeira vez padre, o senhor fez algo de bom. Que adianta essa batina, essa cruz pendurada no seu pescoço, se a vida inteira o sinhô e sua igreja sempre virou as costas para os negros. E ainda tem a coragem de dizê que diante dos oios de Deus todo mundo é iguá. E o nego, num é gente? É mermo uma coisa? Num tem sangue, num é feito de carne e osso assim como o branco? Deus...? Que Deus é esse que o sinhô acredita? (Sai)
CENA X
SALES: - Prepare o chicote...
COISA RUIM: - Tá pronto!
SALES: - Pode deixar. Eu quero ter o prazer de tirar a verdade dessas negras. Você vai atrás daquele negro safado e só retorne a esta fazenda trazendo-o, vivo ou morto.
COISA RUIM: - Sim sinhô.
SALES: - Agora somos nós...
ALVA: - Não Sales. Piedade!
SALES: - É melhor entrar.
ALVA: - Não faz isso. Pelo amor de Deus!
SALES: - Cala-te. (Pega Bernadete pelos cabelos) Por que começo?
BERNADETE: - Juro que num seio de nada não...
SALES: - Mas nem ainda perguntei. Já sentiu o corte e a dor causada por este chicote? Só que estou em dúvida... Se começo por ti ou pela velha escrava Biná. Que acha Bernadete? Será que a velha negra vai suportar muito tempo? Pois vou chicoteá-la até que você me diga onde está Aninha.
BERNADETE: - Num seio sinhô. Juro que num seio. (Chicoteia Biná)
SALES: - Não? Onde está? (Chicoteia Biná)
BERNADETE: - Pare com isso... Juro que não seio.
SALES: - Vais lembrar antes que ela morra de tanto apanhar.
ALVA: - Chega! (Entra na frente)
SALES: - Saia! (A empurra. Ela cai) Não se atreva.
ALVA: - Estás louco. (Ele a esbofeteia)
SALES: - Só saio daqui quando me disser onde se encontra Aninha.
BERNADETE: - Já disse que não seio. Eu juro sinhô. Deixe ela. Bata neu.
ANINHA: - Solte-a. Es-me aqui. Sou eu que mereço está aí. Fui eu que causei toda essa confusão.
ALVA: - Filha...
ANINHA: - Por que esconderam de mim? Por que nunca me disseram que não sou vossa filha?
ALVA: - Que dizes filha?
ANINHA: - Chega de tantas mentiras. Já sei de toda verdade. Tenho sangue negro. Mãe Biná é minha verdadeira mãe. Por que nunca me disse?
BINÁ: - Fiá... Num sô tua mãe. Sinhá Alva é tua mãe.
ANINHA: - Sei que queres me proteger. Mais não precisa mais. Já conheço a verdade.
ALVA: - Eu e Biná parimos no mesmo dia. Só que minha filha nasceu morta. E como você era clarinha pedi a Biná para criar você no lugar da minha filha.
ANINHA: - E meu pai?
ALVA: - Teu pai foi um capitão que trabalhava aqui na fazenda. Quando Sales soube do que aconteceu, mandou matar...
ANINHA: - Assassino!... Solte-a. Me coloque no lugar dela.
ALVA: - Não.
ANINHA: - Seja digno.
SALES: - Terás o que merece. (Ele solta Biná e amarra Aninha. Chicoteia).
RAMOS: - Solte-a.
SALES: - É minha propriedade, assim como qual quer escravo desta fazenda.
RAMOS: - Não mais. A princesa Isabel acaba de assinar a Lai Áurea. Agora definitivamente a partir de hoje dia 13 de maio de 1888, todos os escravos sem exceção estão livres.
SALES: - Não pode ser...
RAMOS: - Acabou. (Grita) Todos os escravos estão livres. Livres! (Sales pega uma arma e sai)
ALVA: - Oh, meu Deus! Sales... (Sai)
RAMOS: - Aninha...
BINÁ: - Fiá.
ANINHA: - Tudo vai ficar bem. (Abraça Bernadete) Obrigado minha amiga.
BERNADETE: - Tive tanto medo.
ANINHA: - Sei que sim. Leve mãe Biná... Cuide dessa ferida. (Sai Bernadete abraçada com Biná) Obrigada.
RAMOS: - Fico feliz em ajudá-la.
ANINHA: - Honrarei minha palavra.
RAMOS: - Palavras são menos valiosas que o desejo do coração. A liberto da promessa!
ANINHA: - És muito generoso.
RAMOS: - Busco ser justo. (Ouvem um tiro. Choro de Alva)
ALVA: - Está morto! Sales... Se matou.
ANINHA: - Mãe...
ALVA: - Fique longe de mim... fique longe de mim! (Estérica. Sai)
QUILÊ - Aninha...
ANINHA: - Quilê? Que faz aqui?
QUILÊ: - Sou livre! Livre.
ANINHA: - Pensei que estivesse no quilombal...
QUILÊ: - Não suportaria ficar longe de você.
ANINHA: - E o capitão do mato?
QUILÊ: - Não precisamos mais se precupá com ele. O Coisa Ruim tá onde merece. Do lado do outro coisa ruim.
ANINHA: - Nem acredito!
QUILÊ: - Vida nova Aninha...
ANINHA: - É, vida nova! (Saem)

F I M

marcondysfranc@gmail.com

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